terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Um sonho

Encontrava-me naquela sala, toda ela branca e muito limpinha, rodeado de velhinhos e velhinhas, todos muito bem vestidos, costume social completo para os cavalheiros, vestidos elegantes para as damas, tal qual paramentados para uma festa de casamento. Mas não era disso que se tratava, por isso aguardávamos em silêncio o bipe da campainha que nos indicava o balcão de atendimento, todos sentados em confortáveis cadeiras estofadas dispostas em fileiras perfeitamente simétricas, um primor do serviço público. Alguns poucos ousavam entabular uma conversa, o restante mirava o azimute de seus próprios pensamentos, tábua de salvação para a perda de tempo.

Ao meu lado um garoto rabiscava um desenho do Homem-Aranha. Sua presença ali era tão antinatural, tão estranha, que era percebida por todos. Porém, possível, como um inocente entre os condenados – o que me causava repulsa e ódio, impotente frente à injustiça daquilo. Ele não devia estar ali. Queria lhe dizer algo, mas toca a campainha, tin-don, é o meu número, balcão tal, “Vamos acabar logo com isso”.

O funcionário que me atende é branco e muito limpinho, veste uma camisa social azul de gola branca e gravata amarela. Usa um óculos discreto e elegante, gel no cabelo bem penteado, parece educado, um primor do serviço público. Pergunta meu nome completo.

- Roberto de Souza Almeida.

Agora tem de apresentar aquela documentação toda, CPF, RG, ETC, nem espero ele pedir e já vou metendo as mãos nos bolsos procurando a carteira, bolsos da calça, nada, bolsos do paletó, nada, bolso da camisa, nada... Para minha surpresa, no bolso interno do paletó encontro uma foto da família tirada há muito tempo. “Mas que porra é essa”... Cara, foi só olhar a foto e meus olhos se enchem de lágrimas, uma sensação de melancolia me invade, advinda não da nostalgia, mas da perda, como se tivesse sido seqüestrado e não houvesse possibilidade de vê-los novamente. Fico envergonhado, levo as mãos aos olhos, me recomponho.

- Me desculpe, acho que esqueci minha carteira...

O funcionário sorri, gentil.

- Tudo bem, senhor. Não precisamos de documentos aqui. Aliás, cabe perguntar: o senhor sabe onde se encontra?

- É claro que sim. Estou num sonho. Fui dormir, acordo numa sala cheia de gente, vestindo um terno e tudo, pode isso?

- Exatamente. O senhor foi dormir, mas não acordou. Morreu.

- Cuma?

- Ataque cardíaco. Fulminante. Sei que é difícil compreender isso agora, tão de repente. Mas é fato, e temos uma equipe especializada para tornar sua passagem menos traumática. Neste momento todos seus parentes e amigos que se encontram aqui estão sendo chamados para recebê-lo. Você não poderia estar num lugar melhor.

- Isso aqui é o Céu, é?

- Sim, senhor. Mas nós preferimos chamá-lo Plano Astral Superior...

- Uau, parece nome de plano de aposentadoria, hehehehe...

- E, de certa forma, é mesmo. Não há nada melhor no mercado. E se o senhor está aqui, pode ter certeza que o merece.

Carai, eu morri. Que merda. Tanto ainda por fazer. Eu nem tenho filhos, poxa...

- Mereço mesmo. Mas, o que esse plano me oferece?

- Basicamente, tudo que o senhor desejar.

- Eu queria uma mansão na beira da praia, com piscina, cozinheira, arrumadeira, passadeira... É possível?

- Claro, senhor. Se é esse seu desejo... Se depois quiser mudar pro campo, é só desejar isso. Roupas limpas, passadas, é só desejar. Não precisa de arrumadeira. Só do desejo.

Putamerda, eu morri... Não, isso é um sonho, só pode ser...

- Hahahaha... Agora que me ocorreu, vocês são comunistas aqui no Céu, né? A gente chega e já ganha casa, comida, hehehehe...

Ele me olha de um jeito grave, sisudo.

- Claro que não, senhor. Comunistas não acreditam em Deus.

- É claro, me desculpa... Eu não aceitei direito essa idéia de morte ainda, queria quebrar o gelo, quando tento ser engraçado eu só falo merda, me desculpa...

Ele me olha de um jeito grave, inquisidor.

- Aliás, cabe perguntar: e o senhor? O senhor acredita em Deus, senhor Roberto?

Ai, e essa agora. Me ajuda, Deus.

- Sim, eu fui batizado, fiz primeira comunhão, essas coisas...

Covarde. Tudo pela casa própria.

- Creio que houve um erro, senhor. Posso ver em seus olhos que não está sendo sincero. Sinto muito, mas o Plano Astral Superior é destinado somente àqueles que crêem em Deus, Nosso Senhor.

- Não é verdade, eu acredito em Deus, sim... Minha família é católica e...

- Sinto muito, mas posso ver no meu sistema que o senhor já publicou um texto onde relata sua descrença em Deus, Nosso Senhor.

- Não, aquilo foi uma peça de ficção, onde descrevia um sonho, não estava falando de mim realmente...

- Sinto muito. Por favor, acompanhe aqueles cavalheiros, eles irão levá-lo ao local para onde vão os descrentes. E lá não é melhor que aqui.

- Espera aí, você mesmo falou que eu merecia...

- Peço desculpas pelo embaraço, mas houve um erro em nosso sistema. Sinto muito, mas vou ter de chamar a segurança caso recuse a se retirar.

- Não, eu sou crente, vê aí no seu sistema...

- Segurança, por favor...

Sim, no Céu também existem seguranças. E lá, eles também são pretos.

- Ah, enfia essa porra no cu!

Eles me levam pra outra sala. Ela também é branca e muito limpinha. Também tem um monte de cadeiras, todas ocupadas por velhinhos e velhinhas e tal. Um primor do serviço público. Pego uma senha.

- Ah, inferno...

Nisso, um velho que está sentado ao meu lado me cutuca, com ar bonachão.

- Sabe o que é? Eles preferem chamar isso aqui de “Plano Astral Inferior”.

Caímos na gargalhada.