terça-feira, 6 de julho de 2010

Vertical

Desperta
E vê esse Céu - tão azul
Um Céu sem nuvens - imaculado
Que dá vontade de mergulhar nele
 

E é assim
Desse jeito
Que nascem os anjos

quarta-feira, 16 de junho de 2010

O Rio

            Quero te mostrar este rio, este rio que existe nos sonhos, olha pra ele, vê tua própria face nesse cristal, vê outros rostos também, todas essas faces misturadas, passando, correndo, ele que é feito dessa água, que é a água da vida, essa vida que corre nele, ele carrega a tua vida, e a vida de todo o mundo, vê seus redemoinhos, as águas turbulentas, toda a espuma, vê seus recantos, suas paragens e cantões, essa calmaria, mas sempre em movimento, ele que não cessa de correr, vê nele o antes, o agora e o depois, ele que é feito do próprio tempo, ele carrega a tua memória, e a memória de todo o mundo, nele estão todos teus desejos, e os desejos de todo o mundo, beba dessa água, sinta seu gosto, mata tua sede, que descobre insaciável, esta sede de vida, toma coragem e põe-te em pé!, fecha teus olhos e respira fundo, lança-te no espaço e mergulha fundo, penetra seu leito até tocar esse solo de sonho, vê os peixes que nele habitam, todas as algas e vegetação e pedras, tudo que é antigo, novo ou será descoberto, todos os mortos, vivos e não-nascidos, observa atentamente, abra os braços, vai-te à tona, enxuga teus olhos e vê que este rio te carrega, te afoga no turbilhão dos teus sentimentos e na calmaria do teu cotidiano, te leva pra longe dos teus desejos, toma coragem e põe-te a nadar!, muda esse curso, teu curso não é o curso do rio, é o curso do teu desejo, cada braçada é difícil, teu corpo dói, mas te enche de vontade, uma vontade de ferro, essa vontade que é o ar que respira e dá força aos teus pulmões, coração, sangue e músculos, uma vontade  de fogo, essa vontade que te aquece, inflama e não te faz desistir, te enche de coragem e vence essa corrente, muda tua trajetória, alcança essa baía, essa baía onde está tua paz, teu amor, tua alegria e serenidade, teu passado, teu presente e futuro, e não te arrependerás deste esforço, descansará, braços e pernas abertas na superfície da água, e vê o Sol com um sorriso no rosto, até que um dia acordará, e vai-te cruzar a margem do rio, pisar na areia e mergulhar nesse Mar, que te é desconhecido. 

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Um Estudo Sobre o Fogo

     Sou criatura solar, devoto deste deus antigo que tem muito nomes, que nos dias claros me fortalece e transmuta – Homem-Pássaro lançado ao céu querendo ganhar o mundo – iluminando os caminhos, rompendo o futuro agora, não temo a morte. Pois trago o fogo comigo, incrustado em meu coração, fornalha que bate tumtum, no ritmo acelerado do meu tempo, destroçando máquinas, engrenagens e sistemas, buscando o incompreensível – a língua primordial. Mas, nos dias nublados, sou Ícaro caído por terra, não por estar muito próximo, mas por estar longe D’ele, e me vejo errando na noite, eu que fujo da escuridão, o anti-vampiro, pálido e sem vida. Pois sou feito do calor desta chama, e só este bem posso te oferecer: se o aceita de bom grado, aninha-se em meus braços, te apertarei forte, e não sentirá frio, nem medo, e congelarei este instante com todo o fogo que é meu desejo.

domingo, 16 de maio de 2010

O Cara

          Olha só esse cara, vez em quando sai pro quintal só pra ver os meninos saindo da escola, que no riso e na gritaria e na pureza das brincadeiras deles, ele também se sente mais puro, parece que vira moleque junto com eles e lembra que fora uma criança feliz, e isso era bom, mas que bom mesmo era observar os pais, tios e avós recebendo os garotos pra voltar pra casa, alguns dando bronca, outros passando a mão na cabecinha deles, mas sempre dando um beijinho naqueles rostinhos todos, coisa linda, e se recorda que também ganhava um beijo do pai e da mãe quando o buscavam na escola, e como era bom!, que ele menino ainda, gostava muito de ganhar carinho, tinha um monte de vida pela frente e nem imaginava que também ia crescer e começar a dar seus beijos por aí, um montão deles, olha só – que maluco – tenta lembrar do gosto de todos eles, e vai puxando o fio da memória, que o novelo dele já tem um bons metros, empinando uma pipa que vai abraçar o Sol, acha engraçado que não se recorda da maioria deles, devia estar bêbado nessas vezes, hihihi, mas não significaram nada mesmo, os que importaram, eram poucos, e ele se lembra de todos, e de todos os gostos o que mais gostava era o gosto dela, aquele gosto que percorrera com toda a língua e fixara ao palato de forma indelével há tanto tempo, lembra do espaço que o contorno de seu corpo ocupa em seus braços, seus sinais, calor e perfume, e que não fazem mal um para o outro, é um só querer bem, e que um dia ela pediu para manterem acesa a chama do afeto que existe entre eles, mesmo naquela ventania toda que habita o Mar revolto que tem dentro dele, e dentro dela também, e que estava feliz com a bondade e beleza desse gesto dela, pois dava significado para um monte de coisas, e percebeu que logo ia anoitecer, então iria à praia e deitaria na areia, braços e pernas esticados como se fosse um anjo, e assim, abraçado a Terra, olharia para o Céu, e sabia que nunca mais se perderia, pois aprendera a encontrar o Norte só de olhar para o Cruzeiro do Sul.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Meu Vizinho

Ah, Itália... Como ti amo. Terra de contradições, onde os ternos têm o melhor corte, tomam-se os melhores cafés e, pasmem!, vota-se no Berlusconi. Entendo a simpatia do povo pelo sujeito, trata-se dum bom vivant e por aqui se aprecia muito la dolce vita, em detrimento da vida loca, que é coisa de porto-riquenho. E, se a vida é doce na Itália, é mais doce ainda no Lago do Cuomo, onde me encontro em exílio, fugido de São Paulo, cidade onde as pessoas trabalham muito e, pasmem!, parecem se orgulhar disso.

Cá vivo numa pequena estância, em companhia de Giuletta, minha cozinheira dos lábios de mel, que me prepara deliciosas massas e me conforta nos momentos de solidão. Nas noites de insônia ela se achega a meu quarto e passamos a representar alguns contos do Decamerão, tudo fica mais divertido e o sono me vem facilmente. No dia seguinte, revigorado, abro as janelas do quarto, a luz invade minh’alma, meus olhos contemplam a beleza do lago, meus ouvidos são despertados pela sinfonia matinal dos pássaros da região e posso sentir o cheiro do café preparado pela doce Gigi, que saboreio sempre acompanhado por algumas fatias de pão - italiano, é claro. Gigi sorri. Que mulher!

Mas alegria de brasileiro dura pouco e, como bom filho de Deus, também hei de ser pregado na cruz. Pois que meu vizinho vendeu sua casinha para um astro de Hollywood, mais conhecido pelo nome de George Clooney, que dizem até ganhou um Oscar. Até aí, nada demais, entenda-se. Dizer que é vizinho do George Clooney pega muito bem com a mulherada, muitas delas passaram a freqüentar minha casa na esperança de ver o astro, o que é raro, pois trata-se de um homem muito reservado. Ao ver o desapontamento estampado em suas lindas faces, não me contenho:

- Vem cá, benzinho, que também tenho meus dotes artísticos. Posso não ter ganhado o Oscar, mas vá lá; a gente tem de fazer nossa parte pelo cinema independente.

E toca representar o Decamerão.

Só não entendo por que sempre que isso acontece no dia seguinte a Gigi me prepara um café mal passado e com pão - italiano, é claro, embolorado. Gigi com aquela cara de merda. Fui reclamar com ela e deu-me com o pau de macarrão na cabeça. Vai entender as mulheres!

Mas divago. O fato é que ser vizinho do George Clooney ia ser muito bacana, não fosse o maledeto resolver fazer umas festas de arromba quase todo final de semana. Minha rua fica apinhada de paparazzis, carros e seguranças das celebridades amigas dele. É triste, lembro-me de São Paulo. Além disso, os mais renomados DJ’s mundiais se oferecem para tocar em suas festas, o que significa ser obrigado a escutar Lady Gaga a noite inteira, em volume máximo. Fico preocupado com o estado mental de Gigi, a pobrezinha não consegue dormir e nem nossas representações do Decamerão são as mesmas. Acabo perdendo a concentração, esqueço o texto, isso nunca tinha me acontecido antes. Um horror.

- O viadinho podia me convidar pra essas festas. Sou vizinho dele, caralho!

No dia seguinte fomos eu e Gigi, fiel escudeira, bater na casa do ator para pôr esta história em pratos limpos. Demos com a cara na porta.

- Ainda solto os cachorros ao filho da puta.

Não deu outra. Na festa seguinte, não sei como, meus dois cachorros, Gog e Magog, escaparam do canil, indo parar no quintal do George. Gog e Magog são dois mastins - napolitanos, é claro – faço minha parte pela preservação da fauna local. Muito amigáveis, apesar de feios pra caralho. Assustam mais do que comem gente, o que torna o boato de que o Tom Cruise saiu mais baixinho da festa totalmente infundado. Bem, depois disso o galã resolveu falar comigo. Expliquei meu ponto, ele o ponto dele – ficou acordado que iria convidar eu e Gigi para as próximas festas. Achei estranho o fato dele estar inflexível até Gigi entrar na sala, depois virou uma manteiga derretida. Vai entender os astros!

Fomos a tal festa, muito animada, cheia de esquisitões. Foi-se o tempo em que meu cabelão e o brinco na orelha eram suficientes para chamar atenção. Confesso que estou démodé – o próprio uso dessa palavra confirma isso, a moda agora é dizer old fashioned, menos na França, é claro – mas para isso tenho minha tática especial: começo a falar português. Todo mundo gosta de algo exótico, a roda já se forma ao meu redor. E claro, me escalam pra fazer caipirinha.

Eu lá fazendo caipirinha e um bando de homens em volta da Gigi, que é só sorrisos. Eita! Tira a mão que a cozinheira é minha!

Vocês já foram em festas que não tem brasileiro? Pois é, nem eu. Esse é o caráter do nosso povo, festivo. Rapidamente encontro alguém pra continuar fazendo as caipirinhas e volto a assumir meu posto ao lado dela, que dançava um pancadão nervoso.

- Gigi, vambora que essa festa tá muito chata!

E foi assim. Hoje o George nos convida para todas as festas, virou amigão. Gosta de aparecer aqui na estância quase todo dia, pra filar uma bóia. Diz que gosta muito da comida da Gigi, eu entendo. Mas não gosto nada do jeito que ele fica olhando pra ela. Só sei que nunca mais esqueci o texto do Decamerão depois disso. Afinal, tenho até um certo nome no cinema independente.

segunda-feira, 22 de março de 2010

O Homem Sem Sombra

Para Maíra Clini

“I have a little shadow that goes in and out with me,

And what can be the use of him is more than I can see.

He is very, very like me from the heels up to the head;

And I see him jump before me, when I jump into my bed.”

Robert Louis Stevenson, My Shadow (primeira estrofe)

Houve uma época em que fui tomado por uma grande melancolia. Perdi completamente a vontade de viver, passava dias inteiros imóvel na cama, minha mente se ocupava de pensamentos sombrios. Era praticamente um morto-vivo. Resultado: um amigo recomendara uma visita ao psicólogo, que recomendara uma visita ao psiquiatra, que recomendara uma visita ao Sr. Prozac. De nada adiantou, e vem daí minha perda de fé na ciência. Tampouco tive ânimo para abraçar qualquer religião.

Com o intuito de passar o tempo, adotei a leitura das obras dos grandes mestres. E, inspirado em Ismael, marujo do Pequod, decidi fazer-me ao mar. No caso, uma viagem para Montevidéu, cidade escolhida por sugestão de uma amiga:

- Você devia ir para Montevidéu. A cidade é a sua cara. Antiquada e decadente.

- Ei!

Ela tinha razão.

Passagem comprada, malas prontas, eu só precisava de um guia de viagem. Costumava comprar meus livros no "Sebo do Espanhol", lá encontraria uns guias muito bons e baratos. O proprietário chamava-se Antonio Melián e era paulista de Piracicaba. "Mas meus pais nasceram em Málaga", fazia questão de afirmar. Não sabia sua idade, mas aparentava ser bem velhinho, o Espanhol. Simpático, tinha a prosa fácil e respondia uma pergunta sempre com outra pergunta. Também era dado a invencionices. Eu o tratava pela alcunha de Seu Toninho porque ele não era espanhol de verdade. Ele me chamava de menino, talvez por não me considerar um homem de verdade.

- Oi, Seu Toninho, tudo bem?

- Oi, menino! O que vai ser hoje?

- Tô procurando um guia de Montevidéu. O senhor tem aí?

- Tá indo pra lá, é?

- Pois é.

- Você vai adorar a cidade. É a sua cara. Antiquada e decadente.

- É, já me falaram isso.

- Tenho aqui um guia muito bom, da autoria de Juan Lopes Eguren. Muito melhor que essas porcarias do Lonely Planet. Ele é de dez anos atrás, mas duvido que Montevidéu tenha mudado muito. É uma cidade mágica, que tem um ritmo próprio, mais lento, que não é o ritmo do mundo. Nenhum guia, mesmo este, pode dar conta das suas maravilhas. Lá ainda existem aqueles que travam duelos de morte, há bodegas em que se pratica o jogo das facas e um clube secreto onde se reúnem escritores que julgamos mortos. Eles escrevem o futuro dos homens.

- O senhor já esteve em Montevidéu, Seu Toninho?

- Pois não acabei de te contar isto? E você, o que vai fazer lá?

Expliquei toda a situação – a apatia causada pela tristeza, a ida aos médicos, a obsessão pelos livros e como a leitura de Moby Dick me influenciou na decisão de fazer a viagem, na esperança de que viver aventuras num lugar remoto pudesse de alguma forma mudar meu estado de espírito.

O Espanhol me olhou com complacência e disse:

- Depressão… Sei muito bem o que é isso e acredite-me, viajar não vai te fazer mal. Mas existem outros meios, é claro… Há uma tribo de bosquímanos que habita o deserto do Kalahari, na África. Eles são chamados de san ou hutetontes e falam a linguagem dos cliques, que acreditam ser a língua dos deuses, que era falada antes do primeiro grito de dor. Crêem que os melancólicos, por eles denominados de kurité estão, na verdade, possuídos por um espírito maligno. Para expulsar este espírito fazem um ritual que consiste em reunir todas as crianças da tribo numa roda, ficando o kurité no centro ao lado de um xamã. Então as crianças começam a entoar cânticos religiosos, o xamã dança e queima ervas que segura nas mãos e bate no kurité com elas. O kurité também começa a dançar junto com o xamã, até que os dois caem desmaiados no chão, em transe. Pode levar horas até isto acontecer. E eles ficam lá deitados, por uns minutos, pois estão no Reino dos Mortos. E lá o xamã pede ao espírito que deixe o corpo do kurité, que isso não é coisa que se faça, onde já se viu estragar a vida de um homem de bem. E o xamã sempre convence o espírito a deixar o sujeito, ele é bom de conversa. Então o kurité acorda com um sorriso no rosto, ele está feliz pois foi até o Reino dos Mortos, reviu os entes queridos que estão falecidos e sabe que eles estão felizes lá. Então já não é mais kurité, é homem de novo. Eu sei porque estava lá e vi tudo isso.

Quer dizer que eu era um kurité. Porém, uma viagem ao Kalahari seria inviável, não tinha dinheiro para tanto. O que me suscitou outro pensamento: não conseguia imaginar o Espanhol viajando para outro país, quanto mais infiltrando-se em sociedades secretas e convivendo com tribos africanas. Ele não parecia um homem de posses, aparentava levar uma vida modesta e bastante frugal. Seus pais eram roceiros que trabalharam em terras arrendadas de um fazendeiro e estudara somente o ciclo básico, pois muito jovem teve de abandonar a escola para ajudá-los no trabalho do campo. Sua loja era pequena, não tinha funcionários e devia gerar renda suficiente apenas para seu sustento. Claro que ele podia ter inventado todas aquelas estórias, mas falara com uma convicção tão impressionante que era difícil acreditar que não tivesse sido testemunha de tais fatos. Decidi confrontá-lo:

- Mas Seu Toninho, me ajuda a entender uma coisa... O senhor me disse que é pobre, filho de roceiros que trabalhavam cortando cana, e só conseguiu juntar dinheiro suficiente pra comprar o sebo... Como é que foi pra todos esses lugares se não tinha dinheiro? Ganhou na loteria, é?

- Você me disse que quer ser escritor, não é?

- Sim, é verdade.

- Ótimo. Já estou velho, não vou viver por muito tempo. Também não tenho filhos, alguém a quem legar minha herança. A história que vou te contar, a história das minhas viagens, não contei para ninguém. Quem sabe você possa publicá-la algum dia. Pois, menino, ela é realmente fantástica.

Então, o Espanhol sentou-se numa cadeira próxima, acendeu um cigarro e começou seu relato.

Como toda história, a minha também tem um começo. E ela começa na infância, quando ainda era um guri. Vivia uma vida miserável, já te disse que desde muito cedo tive de ajudar meu pai na roça, trabalho duro. Cortar cana sob o sol inclemente... Você sabe o que é isso? Não? Ainda bem. Minhas mãos eram só feridas e tive sorte de não perder alguns dedos. Não me recordo de nenhuma brincadeira de criança. Você sabe o que é isso? Não? Ainda bem.

O fato é que mal aprendi a ler, passei a devorar livros, principalmente os romances de cavalaria e de mitologia. As Lendas do Rei Artur e a Távola Redonda, Ivanhoé, Os Doze Trabalhos de Hércules... Essas aventuras me transportavam para um mundo mágico e misterioso, bem diferente da realidade brutal e tediosa a que estava habituado. Meus pais não se importavam de comprá-los para mim, tinham orgulho desse meu hábito, viam nele uma oportunidade para que o filho tivesse uma vida financeira melhor. Estavam enganados.

Cresci e mudei. Mudei para a cidade grande, mudei meu gosto literário. Mas minha paixão pelos livros só fez aumentar. Encontrava-me sozinho aqui, não tinha amigos - Rosa, Machado e Cervantes eram minha companhia. Daí veio a contradição: passei a desgostar das coisas do mundo, do nosso mundo comezinho e cotidiano, ao mesmo tempo que me aprofundei na descoberta do mundo, fantástico e maravilhoso, que existe nos livros. E, creia-me, este mundo é bem real – basta ter olhos para enxergá-lo.

Veja bem, menino, assim como você, também queria correr o mundo. Assim como você, também li Moby Dick, também desejei navegar os oceanos. Mas, diferente de você, não me inspirei em Ismael, não – era Ahab o moto desse desejo, como ele, eu queria a baleia branca, a caça, a vingança, como Aquiles, queria a glória na guerra em Ílion, o sangue de Heitor, o resgate de Helena, como Borges, queria ver o Aleph que se encontra num porão da sala de jantar duma casa em Buenos Aires.

Sabia tratar-se de um sonho, uma empresa de tal monta era impossível para mim. Todo dinheiro que juntei, gastei na compra do sebo. Me conformei com isso, estar perto dos livros, que são minha paixão, é uma forma de explorar esse mundo. Era infeliz, mas somente em parte.

Então, aconteceu – e não foi algo repentino, creio. Porque existem coisas que só damos conta lentamente, ou a falta delas. Porque as coisas que são importantes e amadas, não prestamos muita atenção nelas. Elas estão ali, sempre presentes, você se habitua a elas, o suficiente para esquecê-las. Mas, um dia, elas se vão e você percebe como aquilo te faz falta, como era necessário. Comigo não foi diferente.

Eis que uma manhã abri a janela do quarto, fazia um dia radiante, o sol insiste em me queimar as retinas, instintivamente viro o rosto em direção à parede, noto sua ausência – procuro, não a encontro. Ela não estava mais lá, há quanto tempo? Minha sombra, sumira. Eu, um homem sem sombra.

A verdade, menino, é que não dei muita importância pra isso, no começo. O fato de não ter uma sombra não atrapalha em nada a vida prática, eu ainda via meu reflexo no espelho, conseguia me pentear, escovar os dentes, ainda me sentia inteiro. Sentia-me diferente, é claro, mas esperava me habituar a isso, a gente se adapta a qualquer situação, não é? Eu já era estrangeiro nesse mundo, encarei o ocorrido como uma excentricidade, algo que me fazia único, que me distinguia dos demais.

Mas há um problema: ser único não é algo ruim, a não ser que você tenha consciência disso. Porque saber-se único, é diferente de sentir-se único, é uma maldição. Não era Jesus Cristo o único filho de Deus? Ele também não teve dúvida em sua missão? “Pai, afasta de mim esse cálice.” Pois ele sabia que havia de morrer para purgar o pecado dos homens. Ele tinha consciência que era o Messias, eu tinha consciência que era o homem sem sombra. Ele carpinteiro, eu alfarrabista, ambos amaldiçoados.

Não leve a mal a comparação – se a faço, não é em relação ao seu caráter divino, mas sim sobre sua qualidade de único da espécie. Um anão é diferente, mas não é único, existem outros anões que podem confortá-lo, saber disso é um alívio. Mas não havia outro como eu, ninguém para dividir o fardo. Pois, quando as pessoas me olhavam, logo imaginava que elas olhavam para a ausência de minha sombra, mesmo que a maioria delas nem repare nisso. Tornei-me paranóico, ainda mais recluso, fugia de qualquer luz, ficava nos fundos da loja e saía poucas vezes ao dia. Evitava o contato com as pessoas, com medo delas perceberem que eu não possuía uma sombra, sentia-me incompleto, sem alma, o mais baixo dos seres, pois até os animais projetam uma sombra, eu não tinha relevo, era invisível. Era menos que uma cadeira, uma pedra. Era nada.

Quanto tempo durou essa agonia? Anos, talvez. Passei a definhar, imaginando que a sublimação do estado corpóreo fosse o fim do processo. Não me alimentava mais, recolhi-me à cama, esperando a morte. Espantou-me a naturalidade com que aceitei isso.

Então, aconteceu – caí num sono profundo. E tive um sonho, o maior sonho da minha vida, um sonho de mil dias. Sonhei que desgarrara de mim mesmo, arrastava-me pelo colchão, pelo chão, e recostado a parede observava meu corpo ali na cama, mais jovem e forte. Sentia aquele desejo de conhecer o mundo e suas maravilhas e sentia pena daquele corpo físico ali deitado, que nunca conseguiria realizá-lo. Eu queria o mundo, ia obtê-lo, de um jeito ou de outro. Ainda recostado a parede dirigi-me à sala, passei por debaixo da fresta da porta, ganhei a rua, o mundo, seus mistérios.

Acordei, revigorado pelo sono, pensei. Abri a janela do quarto, fazia um dia radiante, o sol insiste em me queimar as retinas, instintivamente viro o rosto em direção à parede, noto sua presença. Ela estava lá, minha sombra, ela voltara.

Percebeu, menino? Não se tratava de um sonho, se tratava de uma memória. A memória da minha sombra, que era minha memória, pois um homem também não é sua própria sombra? E para uma sombra, tudo é permitido, o acesso aos lugares mais secretos, aos rituais mais mágicos. A sombra é a observadora nata da Natureza, aquela que testemunha os atos mais heróicos e os mais sórdidos praticados pelo homem.

E foi assim que explorei o mundo, menino. Foi assim que vi o último yeti ser abatido pelo sherpa Pemba Pangboche Gelu numa luta de morte em uma montanha no Himalaia, os cinco ovos de dragão guardados num mosteiro da China, a cerimônia de adoração a um bebê que nascera com duas cabeças, reencarnação do deus Ganesha, numa vila da Índia. Fui testemunha de tudo isso, e muito mais. É algo pra se contar, não?

- Uau, Seu Toninho. Que história!

- Tome, aceite o guia como um presente. Duvido que vá precisar dele, explore o mundo com os olhos de um sonhador. Lembre-se que as maravilhas existem, basta ter olhos para enxergá-las.

Percebi que o Espanhol queria ficar sozinho. Despedi-me dele, com um abraço afetuoso. Não me furtei a olhar para sua sombra, para confirmar se ela estava lá. Estava e, por um momento, pareceu acenar para mim.

São Paulo, 12 /03 /2010

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Um sonho

Encontrava-me naquela sala, toda ela branca e muito limpinha, rodeado de velhinhos e velhinhas, todos muito bem vestidos, costume social completo para os cavalheiros, vestidos elegantes para as damas, tal qual paramentados para uma festa de casamento. Mas não era disso que se tratava, por isso aguardávamos em silêncio o bipe da campainha que nos indicava o balcão de atendimento, todos sentados em confortáveis cadeiras estofadas dispostas em fileiras perfeitamente simétricas, um primor do serviço público. Alguns poucos ousavam entabular uma conversa, o restante mirava o azimute de seus próprios pensamentos, tábua de salvação para a perda de tempo.

Ao meu lado um garoto rabiscava um desenho do Homem-Aranha. Sua presença ali era tão antinatural, tão estranha, que era percebida por todos. Porém, possível, como um inocente entre os condenados – o que me causava repulsa e ódio, impotente frente à injustiça daquilo. Ele não devia estar ali. Queria lhe dizer algo, mas toca a campainha, tin-don, é o meu número, balcão tal, “Vamos acabar logo com isso”.

O funcionário que me atende é branco e muito limpinho, veste uma camisa social azul de gola branca e gravata amarela. Usa um óculos discreto e elegante, gel no cabelo bem penteado, parece educado, um primor do serviço público. Pergunta meu nome completo.

- Roberto de Souza Almeida.

Agora tem de apresentar aquela documentação toda, CPF, RG, ETC, nem espero ele pedir e já vou metendo as mãos nos bolsos procurando a carteira, bolsos da calça, nada, bolsos do paletó, nada, bolso da camisa, nada... Para minha surpresa, no bolso interno do paletó encontro uma foto da família tirada há muito tempo. “Mas que porra é essa”... Cara, foi só olhar a foto e meus olhos se enchem de lágrimas, uma sensação de melancolia me invade, advinda não da nostalgia, mas da perda, como se tivesse sido seqüestrado e não houvesse possibilidade de vê-los novamente. Fico envergonhado, levo as mãos aos olhos, me recomponho.

- Me desculpe, acho que esqueci minha carteira...

O funcionário sorri, gentil.

- Tudo bem, senhor. Não precisamos de documentos aqui. Aliás, cabe perguntar: o senhor sabe onde se encontra?

- É claro que sim. Estou num sonho. Fui dormir, acordo numa sala cheia de gente, vestindo um terno e tudo, pode isso?

- Exatamente. O senhor foi dormir, mas não acordou. Morreu.

- Cuma?

- Ataque cardíaco. Fulminante. Sei que é difícil compreender isso agora, tão de repente. Mas é fato, e temos uma equipe especializada para tornar sua passagem menos traumática. Neste momento todos seus parentes e amigos que se encontram aqui estão sendo chamados para recebê-lo. Você não poderia estar num lugar melhor.

- Isso aqui é o Céu, é?

- Sim, senhor. Mas nós preferimos chamá-lo Plano Astral Superior...

- Uau, parece nome de plano de aposentadoria, hehehehe...

- E, de certa forma, é mesmo. Não há nada melhor no mercado. E se o senhor está aqui, pode ter certeza que o merece.

Carai, eu morri. Que merda. Tanto ainda por fazer. Eu nem tenho filhos, poxa...

- Mereço mesmo. Mas, o que esse plano me oferece?

- Basicamente, tudo que o senhor desejar.

- Eu queria uma mansão na beira da praia, com piscina, cozinheira, arrumadeira, passadeira... É possível?

- Claro, senhor. Se é esse seu desejo... Se depois quiser mudar pro campo, é só desejar isso. Roupas limpas, passadas, é só desejar. Não precisa de arrumadeira. Só do desejo.

Putamerda, eu morri... Não, isso é um sonho, só pode ser...

- Hahahaha... Agora que me ocorreu, vocês são comunistas aqui no Céu, né? A gente chega e já ganha casa, comida, hehehehe...

Ele me olha de um jeito grave, sisudo.

- Claro que não, senhor. Comunistas não acreditam em Deus.

- É claro, me desculpa... Eu não aceitei direito essa idéia de morte ainda, queria quebrar o gelo, quando tento ser engraçado eu só falo merda, me desculpa...

Ele me olha de um jeito grave, inquisidor.

- Aliás, cabe perguntar: e o senhor? O senhor acredita em Deus, senhor Roberto?

Ai, e essa agora. Me ajuda, Deus.

- Sim, eu fui batizado, fiz primeira comunhão, essas coisas...

Covarde. Tudo pela casa própria.

- Creio que houve um erro, senhor. Posso ver em seus olhos que não está sendo sincero. Sinto muito, mas o Plano Astral Superior é destinado somente àqueles que crêem em Deus, Nosso Senhor.

- Não é verdade, eu acredito em Deus, sim... Minha família é católica e...

- Sinto muito, mas posso ver no meu sistema que o senhor já publicou um texto onde relata sua descrença em Deus, Nosso Senhor.

- Não, aquilo foi uma peça de ficção, onde descrevia um sonho, não estava falando de mim realmente...

- Sinto muito. Por favor, acompanhe aqueles cavalheiros, eles irão levá-lo ao local para onde vão os descrentes. E lá não é melhor que aqui.

- Espera aí, você mesmo falou que eu merecia...

- Peço desculpas pelo embaraço, mas houve um erro em nosso sistema. Sinto muito, mas vou ter de chamar a segurança caso recuse a se retirar.

- Não, eu sou crente, vê aí no seu sistema...

- Segurança, por favor...

Sim, no Céu também existem seguranças. E lá, eles também são pretos.

- Ah, enfia essa porra no cu!

Eles me levam pra outra sala. Ela também é branca e muito limpinha. Também tem um monte de cadeiras, todas ocupadas por velhinhos e velhinhas e tal. Um primor do serviço público. Pego uma senha.

- Ah, inferno...

Nisso, um velho que está sentado ao meu lado me cutuca, com ar bonachão.

- Sabe o que é? Eles preferem chamar isso aqui de “Plano Astral Inferior”.

Caímos na gargalhada.