segunda-feira, 22 de março de 2010

O Homem Sem Sombra

Para Maíra Clini

“I have a little shadow that goes in and out with me,

And what can be the use of him is more than I can see.

He is very, very like me from the heels up to the head;

And I see him jump before me, when I jump into my bed.”

Robert Louis Stevenson, My Shadow (primeira estrofe)

Houve uma época em que fui tomado por uma grande melancolia. Perdi completamente a vontade de viver, passava dias inteiros imóvel na cama, minha mente se ocupava de pensamentos sombrios. Era praticamente um morto-vivo. Resultado: um amigo recomendara uma visita ao psicólogo, que recomendara uma visita ao psiquiatra, que recomendara uma visita ao Sr. Prozac. De nada adiantou, e vem daí minha perda de fé na ciência. Tampouco tive ânimo para abraçar qualquer religião.

Com o intuito de passar o tempo, adotei a leitura das obras dos grandes mestres. E, inspirado em Ismael, marujo do Pequod, decidi fazer-me ao mar. No caso, uma viagem para Montevidéu, cidade escolhida por sugestão de uma amiga:

- Você devia ir para Montevidéu. A cidade é a sua cara. Antiquada e decadente.

- Ei!

Ela tinha razão.

Passagem comprada, malas prontas, eu só precisava de um guia de viagem. Costumava comprar meus livros no "Sebo do Espanhol", lá encontraria uns guias muito bons e baratos. O proprietário chamava-se Antonio Melián e era paulista de Piracicaba. "Mas meus pais nasceram em Málaga", fazia questão de afirmar. Não sabia sua idade, mas aparentava ser bem velhinho, o Espanhol. Simpático, tinha a prosa fácil e respondia uma pergunta sempre com outra pergunta. Também era dado a invencionices. Eu o tratava pela alcunha de Seu Toninho porque ele não era espanhol de verdade. Ele me chamava de menino, talvez por não me considerar um homem de verdade.

- Oi, Seu Toninho, tudo bem?

- Oi, menino! O que vai ser hoje?

- Tô procurando um guia de Montevidéu. O senhor tem aí?

- Tá indo pra lá, é?

- Pois é.

- Você vai adorar a cidade. É a sua cara. Antiquada e decadente.

- É, já me falaram isso.

- Tenho aqui um guia muito bom, da autoria de Juan Lopes Eguren. Muito melhor que essas porcarias do Lonely Planet. Ele é de dez anos atrás, mas duvido que Montevidéu tenha mudado muito. É uma cidade mágica, que tem um ritmo próprio, mais lento, que não é o ritmo do mundo. Nenhum guia, mesmo este, pode dar conta das suas maravilhas. Lá ainda existem aqueles que travam duelos de morte, há bodegas em que se pratica o jogo das facas e um clube secreto onde se reúnem escritores que julgamos mortos. Eles escrevem o futuro dos homens.

- O senhor já esteve em Montevidéu, Seu Toninho?

- Pois não acabei de te contar isto? E você, o que vai fazer lá?

Expliquei toda a situação – a apatia causada pela tristeza, a ida aos médicos, a obsessão pelos livros e como a leitura de Moby Dick me influenciou na decisão de fazer a viagem, na esperança de que viver aventuras num lugar remoto pudesse de alguma forma mudar meu estado de espírito.

O Espanhol me olhou com complacência e disse:

- Depressão… Sei muito bem o que é isso e acredite-me, viajar não vai te fazer mal. Mas existem outros meios, é claro… Há uma tribo de bosquímanos que habita o deserto do Kalahari, na África. Eles são chamados de san ou hutetontes e falam a linguagem dos cliques, que acreditam ser a língua dos deuses, que era falada antes do primeiro grito de dor. Crêem que os melancólicos, por eles denominados de kurité estão, na verdade, possuídos por um espírito maligno. Para expulsar este espírito fazem um ritual que consiste em reunir todas as crianças da tribo numa roda, ficando o kurité no centro ao lado de um xamã. Então as crianças começam a entoar cânticos religiosos, o xamã dança e queima ervas que segura nas mãos e bate no kurité com elas. O kurité também começa a dançar junto com o xamã, até que os dois caem desmaiados no chão, em transe. Pode levar horas até isto acontecer. E eles ficam lá deitados, por uns minutos, pois estão no Reino dos Mortos. E lá o xamã pede ao espírito que deixe o corpo do kurité, que isso não é coisa que se faça, onde já se viu estragar a vida de um homem de bem. E o xamã sempre convence o espírito a deixar o sujeito, ele é bom de conversa. Então o kurité acorda com um sorriso no rosto, ele está feliz pois foi até o Reino dos Mortos, reviu os entes queridos que estão falecidos e sabe que eles estão felizes lá. Então já não é mais kurité, é homem de novo. Eu sei porque estava lá e vi tudo isso.

Quer dizer que eu era um kurité. Porém, uma viagem ao Kalahari seria inviável, não tinha dinheiro para tanto. O que me suscitou outro pensamento: não conseguia imaginar o Espanhol viajando para outro país, quanto mais infiltrando-se em sociedades secretas e convivendo com tribos africanas. Ele não parecia um homem de posses, aparentava levar uma vida modesta e bastante frugal. Seus pais eram roceiros que trabalharam em terras arrendadas de um fazendeiro e estudara somente o ciclo básico, pois muito jovem teve de abandonar a escola para ajudá-los no trabalho do campo. Sua loja era pequena, não tinha funcionários e devia gerar renda suficiente apenas para seu sustento. Claro que ele podia ter inventado todas aquelas estórias, mas falara com uma convicção tão impressionante que era difícil acreditar que não tivesse sido testemunha de tais fatos. Decidi confrontá-lo:

- Mas Seu Toninho, me ajuda a entender uma coisa... O senhor me disse que é pobre, filho de roceiros que trabalhavam cortando cana, e só conseguiu juntar dinheiro suficiente pra comprar o sebo... Como é que foi pra todos esses lugares se não tinha dinheiro? Ganhou na loteria, é?

- Você me disse que quer ser escritor, não é?

- Sim, é verdade.

- Ótimo. Já estou velho, não vou viver por muito tempo. Também não tenho filhos, alguém a quem legar minha herança. A história que vou te contar, a história das minhas viagens, não contei para ninguém. Quem sabe você possa publicá-la algum dia. Pois, menino, ela é realmente fantástica.

Então, o Espanhol sentou-se numa cadeira próxima, acendeu um cigarro e começou seu relato.

Como toda história, a minha também tem um começo. E ela começa na infância, quando ainda era um guri. Vivia uma vida miserável, já te disse que desde muito cedo tive de ajudar meu pai na roça, trabalho duro. Cortar cana sob o sol inclemente... Você sabe o que é isso? Não? Ainda bem. Minhas mãos eram só feridas e tive sorte de não perder alguns dedos. Não me recordo de nenhuma brincadeira de criança. Você sabe o que é isso? Não? Ainda bem.

O fato é que mal aprendi a ler, passei a devorar livros, principalmente os romances de cavalaria e de mitologia. As Lendas do Rei Artur e a Távola Redonda, Ivanhoé, Os Doze Trabalhos de Hércules... Essas aventuras me transportavam para um mundo mágico e misterioso, bem diferente da realidade brutal e tediosa a que estava habituado. Meus pais não se importavam de comprá-los para mim, tinham orgulho desse meu hábito, viam nele uma oportunidade para que o filho tivesse uma vida financeira melhor. Estavam enganados.

Cresci e mudei. Mudei para a cidade grande, mudei meu gosto literário. Mas minha paixão pelos livros só fez aumentar. Encontrava-me sozinho aqui, não tinha amigos - Rosa, Machado e Cervantes eram minha companhia. Daí veio a contradição: passei a desgostar das coisas do mundo, do nosso mundo comezinho e cotidiano, ao mesmo tempo que me aprofundei na descoberta do mundo, fantástico e maravilhoso, que existe nos livros. E, creia-me, este mundo é bem real – basta ter olhos para enxergá-lo.

Veja bem, menino, assim como você, também queria correr o mundo. Assim como você, também li Moby Dick, também desejei navegar os oceanos. Mas, diferente de você, não me inspirei em Ismael, não – era Ahab o moto desse desejo, como ele, eu queria a baleia branca, a caça, a vingança, como Aquiles, queria a glória na guerra em Ílion, o sangue de Heitor, o resgate de Helena, como Borges, queria ver o Aleph que se encontra num porão da sala de jantar duma casa em Buenos Aires.

Sabia tratar-se de um sonho, uma empresa de tal monta era impossível para mim. Todo dinheiro que juntei, gastei na compra do sebo. Me conformei com isso, estar perto dos livros, que são minha paixão, é uma forma de explorar esse mundo. Era infeliz, mas somente em parte.

Então, aconteceu – e não foi algo repentino, creio. Porque existem coisas que só damos conta lentamente, ou a falta delas. Porque as coisas que são importantes e amadas, não prestamos muita atenção nelas. Elas estão ali, sempre presentes, você se habitua a elas, o suficiente para esquecê-las. Mas, um dia, elas se vão e você percebe como aquilo te faz falta, como era necessário. Comigo não foi diferente.

Eis que uma manhã abri a janela do quarto, fazia um dia radiante, o sol insiste em me queimar as retinas, instintivamente viro o rosto em direção à parede, noto sua ausência – procuro, não a encontro. Ela não estava mais lá, há quanto tempo? Minha sombra, sumira. Eu, um homem sem sombra.

A verdade, menino, é que não dei muita importância pra isso, no começo. O fato de não ter uma sombra não atrapalha em nada a vida prática, eu ainda via meu reflexo no espelho, conseguia me pentear, escovar os dentes, ainda me sentia inteiro. Sentia-me diferente, é claro, mas esperava me habituar a isso, a gente se adapta a qualquer situação, não é? Eu já era estrangeiro nesse mundo, encarei o ocorrido como uma excentricidade, algo que me fazia único, que me distinguia dos demais.

Mas há um problema: ser único não é algo ruim, a não ser que você tenha consciência disso. Porque saber-se único, é diferente de sentir-se único, é uma maldição. Não era Jesus Cristo o único filho de Deus? Ele também não teve dúvida em sua missão? “Pai, afasta de mim esse cálice.” Pois ele sabia que havia de morrer para purgar o pecado dos homens. Ele tinha consciência que era o Messias, eu tinha consciência que era o homem sem sombra. Ele carpinteiro, eu alfarrabista, ambos amaldiçoados.

Não leve a mal a comparação – se a faço, não é em relação ao seu caráter divino, mas sim sobre sua qualidade de único da espécie. Um anão é diferente, mas não é único, existem outros anões que podem confortá-lo, saber disso é um alívio. Mas não havia outro como eu, ninguém para dividir o fardo. Pois, quando as pessoas me olhavam, logo imaginava que elas olhavam para a ausência de minha sombra, mesmo que a maioria delas nem repare nisso. Tornei-me paranóico, ainda mais recluso, fugia de qualquer luz, ficava nos fundos da loja e saía poucas vezes ao dia. Evitava o contato com as pessoas, com medo delas perceberem que eu não possuía uma sombra, sentia-me incompleto, sem alma, o mais baixo dos seres, pois até os animais projetam uma sombra, eu não tinha relevo, era invisível. Era menos que uma cadeira, uma pedra. Era nada.

Quanto tempo durou essa agonia? Anos, talvez. Passei a definhar, imaginando que a sublimação do estado corpóreo fosse o fim do processo. Não me alimentava mais, recolhi-me à cama, esperando a morte. Espantou-me a naturalidade com que aceitei isso.

Então, aconteceu – caí num sono profundo. E tive um sonho, o maior sonho da minha vida, um sonho de mil dias. Sonhei que desgarrara de mim mesmo, arrastava-me pelo colchão, pelo chão, e recostado a parede observava meu corpo ali na cama, mais jovem e forte. Sentia aquele desejo de conhecer o mundo e suas maravilhas e sentia pena daquele corpo físico ali deitado, que nunca conseguiria realizá-lo. Eu queria o mundo, ia obtê-lo, de um jeito ou de outro. Ainda recostado a parede dirigi-me à sala, passei por debaixo da fresta da porta, ganhei a rua, o mundo, seus mistérios.

Acordei, revigorado pelo sono, pensei. Abri a janela do quarto, fazia um dia radiante, o sol insiste em me queimar as retinas, instintivamente viro o rosto em direção à parede, noto sua presença. Ela estava lá, minha sombra, ela voltara.

Percebeu, menino? Não se tratava de um sonho, se tratava de uma memória. A memória da minha sombra, que era minha memória, pois um homem também não é sua própria sombra? E para uma sombra, tudo é permitido, o acesso aos lugares mais secretos, aos rituais mais mágicos. A sombra é a observadora nata da Natureza, aquela que testemunha os atos mais heróicos e os mais sórdidos praticados pelo homem.

E foi assim que explorei o mundo, menino. Foi assim que vi o último yeti ser abatido pelo sherpa Pemba Pangboche Gelu numa luta de morte em uma montanha no Himalaia, os cinco ovos de dragão guardados num mosteiro da China, a cerimônia de adoração a um bebê que nascera com duas cabeças, reencarnação do deus Ganesha, numa vila da Índia. Fui testemunha de tudo isso, e muito mais. É algo pra se contar, não?

- Uau, Seu Toninho. Que história!

- Tome, aceite o guia como um presente. Duvido que vá precisar dele, explore o mundo com os olhos de um sonhador. Lembre-se que as maravilhas existem, basta ter olhos para enxergá-las.

Percebi que o Espanhol queria ficar sozinho. Despedi-me dele, com um abraço afetuoso. Não me furtei a olhar para sua sombra, para confirmar se ela estava lá. Estava e, por um momento, pareceu acenar para mim.

São Paulo, 12 /03 /2010

6 comentários:

  1. Orgulho-me muito de vc e seus contos.
    Parabens !

    Murilo.

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  2. Obrigado, Murilo! O sentimento é recíproco.

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  3. Cara, o que falar né? Eu achei perfeito. Muito bem escrito e gostoso de ler. Pena que vc não escreve mais frequentemente, pq da sim para escrever um livro de contos.

    Abs,
    Vaz

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  4. Muito legal Flecha! Bem escrito e divertido.Tive a impressão de ter lido algo escrito por algum escritor antigo, já consagrado...ou sejá, continue na sua tarefa porque vc Já chegou lá! Ah! não precisa estar angustiado pra escrever viu! Abraços. João Rafael

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  5. Obrigado, João!
    Gostei muita da sua visita. Pretendo publicar coisas novas em breve.
    Abraço!

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